Nem tudo está perdido: apenas
as paredes estão, as estrelas cadentes,
os sapatos e malas, os pingos de chuva.
Ora essa: tenhamos esperança. Nem
tudo está resolvido: apenas as costas
se vão, os dedos sem carícias, os terremotos
japoneses, as guerras a sós. Ora veja:
ainda tocam-se discos. Nem tudo foi
milagre. Nem tudo foi por pouco. Há
ainda o perdido, a fortaleza. Há ainda
todas as resoluções antes de amar.
CIRCUNSTANCIAL
Olhe para as circunstâncias: não era para termos
sobrevivido
a essa infância. Não era para
termos escapado
dessa vizinhança. Mas aonde chegamos
não é lugar de descanso.
Um começo imperativo
nos assombra em todo canto.
Olhe para as circunstâncias:
não devíamos ter escapado das estatísticas.
Se aqui estamos é por teimosia.
Sobrevivemos
o inevitável. Ganhamos um pouco de peso. Mas olhe
para as circunstâncias: a gola em que nos enfiamos
é menor que o pescoço,
menor que tudo que já tivemos,
fomos, e vimos. Sobrevivemos
à fazenda de cana-de-açúcar, mas olhe
onde fomos parar: no meio de uma colheita.
Vamos ser honestos,
essas mãos contrastam muito com esse piso de mármore.
NUNCA FORAM VOCÊS OS QUE MORRERAM
Mas veja pelo lado bom: ainda
somos jovens para morrer.
Temos, de certa forma, uma vida.
A taxa de mortalidade do futuro
nunca esteve tão alta.
Não temos certeza de mais nada.
Dizer se tornou burocrático.
Mas agora sabemos que é impossível
agradar a todos, mesmo
dizendo que "nem a gregos e a troianos".
Soltamos menos fogos de artifício.
Encerramos as votações em muitos
países.
Corremos menos. Comemos mais.
No meio da rua, um grito comunitário:
olhe pelo lado bom das coisas:
ainda é possível se salvar
do mundo. Ainda existem portas abertas:
as igrejinhas, os barracões, e os bares.
Sim, ainda é possível o genocídio, mas
veja pelo lado bom das coisas:
"nunca antes fomos nós os que morreram."
Pedro Moreira (Itaí, SP)