Sessenta e nove é o número de poemas do conjunto daqueles que foram enviados para a chamada Subversão no Século XXI. Sessenta e seis é o número de poemas de um conjunto contido nesse; o dos poemas que, embora enviados, não foram publicados nessa edição. Os poemas desse subconjunto satisfazem, porém, uma condição interessante para a atribuição do predicado “ser subversivo” – adiante, condição de subversão. A condição de subversão em jogo é a de não ter sido aceito na mencionada chamada e, sendo assim, não se tornar de certo modo menos subversivo por assim o ter sido. Mais diretamente: talvez seja, por assim dizer, “subversivo”, não ser aceito numa chamada intitulada Subversão no Século XXI.
É provavelmente ingênuo pensar, porém, que essa última frase trará alguma espécie de consolação aos autores dos poemas do mencionado subconjunto. Nesses – é plausível crer – ela pode causar até certa cólera. Acho que é assim, ao menos, que eu me sentiria se eu fosse um deles. Além disso, acho que eu tenderia a pensar assim: “ou bem o critério implícito de seleção foi proximidade afetiva com os organizadores da chamada ou bem o critério implícito de seleção foi alguma espécie de critério sociológico”. Por exemplo, o de “portar um tipo de genitália”, “ter uma certa cor da pele”, “adotar uma determinada prática sexual”, “ter nascido em um lugar específico” etc. Afinal, é fácil imaginar um mundo possível onde a maioria das chamadas para publicação de poemas, prêmios literários ou mesmo convites para recitar poemas em cerimônias de inauguração presidencial se dão à luz desses critérios. A proximidade desse mundo com o Brasil atual é uma questão acerca da qual suspendo o juízo.
Mais crucial é afirmar que uma condição de subversão negativa foi adotada para selecionar os três poemas que fazem parte do conjunto dos poemas que foram enviados e publicados na chamada em questão. Adiante, eu chamo esses poemas de “selecionados”. A condição de subversão negativa é a de não ser um poema do reconhecimento ou modernista normativo, ao menos não na minha intepretação. Essa interpretação, talvez como qualquer outra, é racionalmente disputável. Mas ela é também justificada pelo presente texto que procura mostrar o porquê dessa interpretação ser interessante em detrimento do fato dela, como talvez qualquer outra, pressupor inconscientemente toda sorte de tese. Ademais, vale a pena mencionar, sou poeta; Por uma estética do constrangimento e FGAM atestam. Quero dizer: não almejo ser nenhuma espécie de crítico “neutro” ou “imparcial”. Duvido da existência desses.
Um poema do reconhecimento é um cujo eu-lírico, uso de linguagem e descrição de um estado de coisas são quase ordinários; isso de modo praticamente irrestrito e que, sendo assim, “ecoa” alguma espécie de “senso comum”. Logo, é provável que os leitores se reconheçam ou reconheçam alguém que eles conhecem nesse poema; digamos, à luz do fato do poema parecer, em suma, fazer alguma espécie de ponto que a maioria num dado contexto usualmente toma como óbvio. Por exemplo, o ponto que “não devemos entrar em contradição”. Uma contradição é qualquer sentença formalizável à luz da assim chamada “Lógica Sentencial” em termos de α ^ ~α, assumindo que: α é qualquer sentença; ^ é o sinal de conjunção que captura alguns usos do “e” e ~ é o sinal de negação que captura alguns usos do “não”. Um exemplo de contradição formalizável assim é “vidas Almeida importam e vidas Almeida não importam”, assumindo que “vidas Almeida” se refere à vida de qualquer um, como o ex-ministro, Silvio Almeida, que passou por alguma espécie de cancelamento ao ser largamente tachado de “sexista”, “racista”, “ homofóbico” etc. Pensemos, em outras palavras, na pessoa na qual uma massa tacou a primeira e muitas outras pedras num sentido metafórico ou mesmo literal, como no cenário de João 8: 1-11.
Um poema modernista normativo é um cujo eu-lírico, uso de linguagem e descrição de um estado de coisas também são quase ordinários, mas mais restritamente. Em outras palavras, eles assim o são em relação ao cânone modernista representado por poetas como Charles Baudelaire. Isso significa que o eu-lírico, uso da linguagem e a descrição de um estado de coisas do poema modernista normativo “ecoam” os eu-líricos, usos de linguagem e descrições de estados de coisas encontradas nos poemas do cânone modernista. Por exemplo, sugerindo que certas contradições são verdadeiras como Walt Whitman já fez nos versos: “Eu contradigo a mim mesmo? / Pois bem, então eu contradigo a mim mesmo”. Escrever poemas modernistas normativos é, em suma, sugerir, que devemos escrever poemas modernistas tal como tem sido feito recorrentemente por mais de um século e meio.
Nem sempre é fácil determinar se um poema é do reconhecimento ou modernista normativo. Considere, por exemplo, o poema, “A montanha que nós escalamos” que Amanda Gorman recitou na cerimônia de inauguração da presidência de Joe Biden e que, sendo assim, talvez possa ser chamado de “o poema mais canônico do nosso tempo”. Eu suspendo o juízo sobre se esse poema é do reconhecimento, modernista normativo ou um e outro. Eu faço o mesmo em relação à proximidade do Brasil atual com outro mundo possível facilmente imaginável, onde a maioria dos poemas publicados em chamadas para publicação de poemas e que recebem prêmios literários são do reconhecimento, modernistas normativos ou um e outro. Isso porque esses poemas convêm mensagens consideravelmente banais como “sexismo é ruim” ou “racismo é ruim” ao invés de tratar de temas mais específicos acerca do sexismo ou do racismo. Por exemplo, se de “vidas Almeida importam e vidas Almeida não importam” se segue por consequência lógica qualquer sentença como “O mal existe em certas ‘piadas’ sobre Anielle Franco”. Esse é um tipo de raciocínio que tem sido tradicionalmente chamado de Explosão; ele é formalizável assim: α ^ ~α ⊢ β, assumindo que ⊢ é o sinal de consequência lógica e β é qualquer sentença.
Os três poemas selecionados – ao menos na minha interpretação que tem as propriedades mencionadas acima – satisfazem ainda uma condição de subversão positiva; ser subversivo em algum sentido plausível do termo “subversão”. Mais exatamente, eu penso assim.
O poema “Terapia”, de João Felipe Salomão satisfaz a condição de subversão positiva de explicitar que, contrário ao sugerido pelo Sócrates da República de Platão bem como por Rudolf Carnap, um poema pode ter alguma espécie de logos ao se valer do que podemos chamar, não de consequência lógica, mas, sim, de consequência lógico-poética. Essa última, à luz de um conjunto de versos-premissas impele racional-emotivamente à aceitação de um verso conclusão. “Terapia” pode ser lido assim porque: seus primeiros seis versos podem ser interpretados como um conjunto de premissas formalizáveis em termos de {α ^ β ^ γ ^ δ ^ ε ^ ζ}; seus últimos quatro versos podem ser interpretados como uma conclusão formalizável em termos de η; e a relação entre essa conclusão e essas premissas parece captável por uma consequência lógico-poética formalizável em termos de ⊢poética. “Terapia” aponta, assim, para uma espécie de raciocínio lógico-poético; um raciocínio que é bastante diferente dos raciocínios, como Explosão, que têm sido usualmente entendidos como merecedores da alcunha de serem “lógicos”.
O poema “ANJO_GABRIEL.RIP”, de Rafael Caputo satisfaz a condição de subversão positiva de tratar de uma disputa tradicional, apontar para uma resposta igualmente tradicional e, no entanto, assim o fazer por meio de uma forma que, ao menos para mim, parece bastante inovadora. A disputa tradicional é sobre a existência do mal. Mais exatamente, ela é a disputa acerca da relação entre a existência de um Deus cristão que tem a propriedade de ser sumamente bom e a existência de algo que poderia ser chamado de “mal” como as “piadas” mencionadas acima. A resposta tradicional para essa disputa – sugerida, por exemplo, por Santo Agostinho – é que o mal em si não existe; o que existe são apenas graus diferentes de carência e de participação em Deus que, na vida terrena, nunca são iguais a 0% ou a 100% mas sempre entre esses dois valores. A forma que me parece inovadora é a de apontar para essa visão por meio de um vocabulário que remete ao da Internet – e.g., “#OAbusado”– bem como de uma sugestão: que a Internet ou as grandes empresas, como o Google, que a monopolizam pouco nos auxiliam a resolver a mencionada disputa.
Já o poema sem título que começa com o verso “Tirésias, o algoritmo, prevê-me” foi escrito por Guilherme Delgado. Esse último é alguém – não tenho o menor problema de reconhecer – que eu conheço pessoalmente. Suspendo o juízo sobre se isso afetou meu juízo. Não suspendo o juízo, porém, acerca de outro ponto; que esse poema sem título que acabei de mencionar satisfaz a condição de subversão positiva de se valer de três tipos de vagueza para sugerir um ponto insólito. Os três tipos de vagueza em jogo são: i) Entre o passado grego de Tirésias e o presente em algum lugar do globo de modo que não fica nítido quando ou onde o estado de coisas descrito no poema se dá. ii) Entre o que é chamado de “homem” e o que é chamado de “mulher” de modo que não fica nítido se Tirésias ou o (a) eu-lírico (a) é um, o outro ou um e outro. E iii) entre Tirésias e o (a) eu-lírico (a) de modo que não fica nítido se o poema descreve um diálogo ou um monólogo. O ponto insólito é que existe para além ou por meio dessas três vaguezas alguma espécie de verdade a-histórica captável por uma espécie de algoritmo profético que prevê o que necessariamente se dará.
Duvido que o presente texto trará a nomeada espécie de consolação. Algo, no entanto, não é particularmente fácil de ser racionalmente negado: que, diferente do que tem ocorrido em certas chamadas para publicação, prêmios literários e convites para recitar poemas em inaugurações presidências em mundos possíveis ou até no Brasil, esse texto procurou justificar o porquê de alguns poemas – em detrimento de outros – terem sido publicados no presente número da Subversa. Isso foi feito de um modo aberto ao escrutínio público que talvez possa suscitar alguma espécie de debate; digamos, entre os interessados em condições de subversão ou, mais geralmente, em critérios para atribuição de valor estético a poemas.
Felipe G. A. Moreira é doutor em Filosofia pela Universidade de Miami. Publicou as coletâneas de poemas Por uma estética do constrangimento (2013) e FGAM (2021) e o livro de filosofia The Politics of Metaphysics (2022). No momento, é Pós-Doutorando na UNESP, onde desenvolve pesquisa sobre a filosofia da lógica. https://www.felipegamoreira.com/