Oswald de Andrade ainda é subversivo?

Morgana Rech

(foto do cabeçalho: capa da Revista de Antropofagia publicada em São Paulo em 1928-1929, reeditada em 1976. fonte: Hemeroteca Digital)

Este ensaio é uma resposta à comunicação feita pelo psicanalista Luís Cláudio Figueiredo, apresentada em um congresso que tivemos em maio de 2024, em São Paulo.

Para ser mais precisa, é uma resposta a um acontecimento que presenciei, da plateia, ao final daquela fala. A apresentação se chamava “Intertextualidade e parasitismo em psicanálise: consequências para a formação do analista”. Ele falava sobre a importância de se considerar a intenção com a qual nos aproximamos dos textos psicanalíticos e dos efeitos verdadeiros que essa intenção gera em nossas formações.

Mais do que a instituição à qual nos filiamos (mas também), mais do que o congresso no qual nos inscrevemos (mas também), Figueiredo destacou a relação textual da formação psicanalítica e as posturas emocionais que assumimos diante dela. A mim chegou na forma da seguinte pergunta: pegamos um livro com mãos colonizadas e subalternas ou com mãos criativas? E essa criatividade, por sua vez, é obediente às normas ou não? Penso que, para quem pratica a atividade clínica, essa pergunta também serviria se transposta fosse para dentro do consultório, quando nos dispomos a ouvir e, sobretudo, ler a história de alguém. Mas isso fica para outro momento.

Fato é que o poeta modernista brasileiro Oswald de Andrade foi convidado por Figueiredo, na forma espiritual, a adentrar textualmente o evento com sua proposta antropofágica. O texto da apresentação continha o espírito alegre e canibalístico de Oswald, evocado por Figueiredo como necessário ao debate psicanalítico, de maneira que o poeta apareceu como uma legítima presença no ambiente, para além de mera referência teórica bem colocada academicamente. No arremate, foi elevado à condição de penetra pelo psicanalista, que mostrou suas alianças teóricas e transferenciais a modo de uma deglutição.

Creio que há poucas palavras melhores que penetra para definir a presença de poetas em ambientes. Ou melhor: a postura de poetas. Ou melhor: o modo como psicanalistas devem ler a entrada de poetas na própria teorização psicanalítica. Do ponto de vista do anfitrião, o penetra é um desviante: elogio para poetas, afinal é sempre um anfitrião que define a condição dos penetras, ao que os poetas respondem com suas penetrações. No caso em questão, eu diria que a fala Figueiredo-Oswald foi uma feliz aliança penetrante no ambiente.

A proposta antropofágica de Oswald, para quem não conhece, é um manifesto por um Id não colonizado de nossas origens. Pelo nosso não-parasitismo intertextual em face de nossas heranças subalternas, inclusive no meio psicanalítico. Serviu ao propósito de Figueiredo: de destacar a capacidade crítica que devemos ter num congresso que homenageava um autor europeu do século XX e que reconhecia o espírito também subversivo de suas propostas clínicas[1]. A sugestão de Oswald-Figueiredo era de que pudéssemos ler essa homenagem dentro de nossos próprios critérios de sofrimento e tratamento, o que obviamente inclui a digestão criativa das fatalidades brasileiras em nossas leituras teóricas e em nossos desafios clínicos cotidianos.

Durante o debate que se seguiu, uma objeção surgiu na plateia em torno da questão da colonização e da identidade de Oswald de Andrade. O argumento de que nenhum indivíduo branco e elitizado, como ele, poderia ser considerado penetra no Brasil, barrava sua entrada no evento. Parece que essa objeção-fatalidade ilustra o cerne do que está posto em outro manifesto oswaldiano, o do Pau Brasil, onde ele critica o academicismo que pretende "dominar as selvas selvagens" sob o pretexto de sermos doutores. Pela lógica, me parece que na perspectiva dessa objeção, só nos restaria um grande silêncio ou uma nova recolonização diante das novas normas que estabelecem de novo os critérios para ser e não ser penetra. Ou pior: um assassinato conformado do modernismo brasileiro. Ou pior ainda: a perda da alegria de ser penetra; da alegria das margens; de estar e não estar simultaneamente em ambientes.

Na Roma antiga, a política de cancelamento se dava sob o nome de ostracismo. Mandava-se embora da cidade quem não falasse a língua da norma. Foi mais ou menos o caso do poeta paulistano, que não falou tão bem a língua da norma vigente na época: aquela da “modernização integralista”, muito benéfica para a instauração da ditadura varguista, aliás. Por essas e outras razões, foi considerado o radical, o devorador iconoclasta, o plural, inclusive pelo próprio Mário de Andrade, que obteve maior influência e prestígio na ideia de construção de um “patrimônio cultural”. Enquanto Mário discursava sobre a importância da unidade nacional em torno da preservação do mito fundador do Brasil, Oswald propunha devorar o mito ou qualquer tipo de pureza, para que a alteridade colonizadora se transforme em identidade: “a pureza é um mito”. No manifesto antropofágico, sua posição “contra todos os importadores de consciência enlatada” expressava sua insatisfação com a incorporação de “ideais progressistas” colocadas em instituições culturais brasileiras. Foi formalmente fichado como subversivo por essas e outras razões.

Os exemplos e a diversidade de debates possíveis sobre Oswald de Andrade e sua relação com o modernismo brasileiro são vastíssimos. Porém, a questão que me interessa trazer aqui é que a apresentação Oswald-Figueiredo cumpriu a mesma função de subverter as normas estabelecidas em favor da criatividade teórica e da canibalidade entre colegas, leitores e seus textos. E do não-parasitismo paralisante entre o que lemos/ouvimos e dizemos. Estou mastigando há vários meses esse acontecimento e resolvi escrever esse ensaio para não correr o risco de ele me parasitar por mais tempo, já que tão penetrante em termos antropofágicos. Espero que eu possa desfrutar do efeito Oswald-Figueirediano de escapar das cópias tristes e sisudas na produção de textos analíticos, assim como das posturas opressoras e superegoicas nas análises e supervisões nas quais me envolvo.

Então, à pergunta-título desse ensaio eu responderia que sim; que Oswald de Andrade continua subversivo. Não só por ter sido fichado como tal pelo governo da época, tampouco por ter sido barrado em um evento de psicanálise, mas porque sua proposta antropofágica ainda é capaz de promover a subversão e apontar para o conservadorismo normatizador em ambientes. Isso porque a subversão, como a entendo, tem a ver com a capacidade de um texto continuar escapando às normas estabelecidas e à necessidade desenfreada de agradar. Estou, assim, em acordo com os critérios estabelecidos aqui nesse número da Subversa, de que um texto subversivo não se rebaixa à condição de obedecer, nem de mandar, seja no sentido moral, político ou estético. A subversão precisa penetrar essas três camadas (ou outras, se for o caso) de uma forma inédita, sem renunciar à condição de penetra que lhe é própria. Quando o penetra faz de tudo para receber o convite oficial, a festa perde a graça.

[1] O psicanalista em questão é o húngaro Sándor Ferenczi.

Referência: Cabral, R. C., & Jacques, P. B. (2018). O antropófago Oswald de Andrade e a preservação do patrimônio: um "devorador" de mitos?. Anais Do Museu Paulista: História E Cultura Material, 26, e32. https://doi.org/10.1590/1982-02672018v26e32

Morgana Rech. Psicanalista. Doutora em Teoria Psicanalítica (UFRJ). Mestre em Teoria da Literatura (Universidade do Porto). Pesquisadora de pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica (UFRJ/FAPERJ).