A vigília e o sono de Caetano Veloso em "Narciso em Férias": esboços interpretativos

Sílvia Fernandes

Sílvia Fernandes (Membro Associado da Sociedade de Psicanálise da Cidade do Rio de Janeiro; Dra. em Ciências Sociais; Professora da UFRRJ)

"Sempre achei difícil acreditar que eu, o mesmo que estava ali lúcido falando, ouvindo, agindo e pensando, estaria, dali a alguns minutos inconsciente, sendo visto sem ver, ouvido sem ouvir, presente para os outros e ausente de mim. Por muitos anos atribui isso a um apego à vida desperta, à vigília e à consciência. ‘É muita perda de tempo dormir’, dizia".

(Veloso, 2020, p. 28).

"Ao adormecer, portanto, digo ao mundo exterior: Deixe-me em paz, quero dormir"

(Freud, 1917, p.117).

 

Introdução
Em 2020, o mundo revirou-se em seus próprios lençóis diante dopesadelo da pandemia de COVID-19. Aos relatos mórbidos, fantasmagóricos, globalmente reverberados sobre a potência de um vírus letal, somaram-se outras narrativas - situadas em oposição à morte - que emergiram na cultura nacional como uma espécie de bálsamo aos corpos em quarentena e ao entorpecimento da psique; algo como uma ode à vida. As produções cinematográficas, os documentários, as lives musicais, acalentaram, de certo modo, a vida viralizada evirtualizada, oferecendo-se como objetos de análise para a psicanálise e outros campos do saber.

A obra Narciso em férias [1] - cujo autor e narrador é Caetano Veloso - configura-se como uma dessas produções culturais emergentes na pandemia e motivou a escrita deste ensaio. Embora a obra em referência não possua a pandemia como objeto, a dupla produção nos interpela e inquieta, talvez por refletir, como no espelho de Narciso, a realidade de outro tipo de confinamento, experimentado no período da ditadura militar, em que a censura sequestrou as liberdades deexpressão, dos corpos e da vida psíquica. Quem de nós não se viu nesse espelho no Brasil recente? E no reflexo do que temos sido como sociedade, quemde nós não viu o próprio eu ser desinvestido de libido objetal; “colocado em férias” nestes tempos de sonhos censurados?

A obra Narciso em Férias retrata a experiência de 54 dias do aprisionamento de Caetano Veloso e Gilberto Gil, em 1968, por ocasião do AI-5. Em plena expansão da Tropicália e dos movimentos contra culturais, o fato ocorreu devido a uma denúncia infundada, disseminada por Randal Juliano, radialista de São Paulo. Caetano é acusado de ter coberto o próprio corpo com a bandeira nacional e cantado o Hino numa versão ofensiva ao regime militar, durante uma apresentação musical na boate carioca Sucata. Tais razões para sua prisão só lhe seriam ditas após mais de trinta dias de detenção [2].

A partir de seu relato temos acesso a um rico imaginário que pareceorquestrar - em fina maestria as notas sobre o dormir, a insônia, o acordar, e o universo imagético denso das superstições. Mas e os sonhos? Por que uma experiência vivida e narrada com ênfase na vida psíquica foi retratada com ênfase no sono sem relato de sonhos? Caetano Veloso não teria sonhado ou não se recordaria de seus sonhos no período em referência, a ponto de não os mencionar em sua narrativa? Em tempos de censura teria ele censurado suas representaçõesincompatíveis com o Eu?
Ao longo do relato, os contextos em que o autor se mantém acordadona prisão e os que despertam seu “sono de chumbo” (Veloso, 2020, p. 80) são contados em associação consciente. Dessa forma, Caetano elege o “tema do sono” (Veloso, 2020, p.27) e os estados a ele associados como fatos relevantes para entender a própria trajetória e construir seu relato pós-facto sobre a prisão.

O dia já estava nascendo e eu ainda não tinha conseguido dormirquando os agentes da Polícia Federal chegaram para me prender (Veloso, 2020, p. 17).

Sua relutância em dormir é ressaltada como sendo uma característicaidentificada desde a primeira infância. Caetano recorda que, na noite da prisão, havia chegado perto do adormecimento. Mas suas “campainhas internas” haviam disparado, fato que ele representa com três associações: medo de adormecer; prazer por estar quase adormecendo e, por fim, porque as ideias e imagens que costumam funcionar como indutoras do sono começavam a aparecer.Mas a campainha externa tocou quando os policiais chegaram e a entrega ao repouso - fator primordial que proporciona o sono - foi interrompida.

Seria possível oferecer hipóteses associativas para a dinâmica dosono de Caetano Veloso a partir da teoria Freudiana sobre os sonhos? A considerar as associações e atribuições de sentido do narrador sobre seu sono
teria a psicanálise algo mais a dizer?

Das ciências sociais aprendemos que não elegemos por acaso nossosobjetos de investigação. Muitas vezes eles carregam nossos desejos mais profundos de mudança no tecido social. Entendo que a mesma lição seja aplicável à psicanálise com uma ressalva importante: aqui a trama do tecido está no inconsciente não mensurável pelasestatísticas e não capturado pelas etnografias antropológicas. No que concerne aos vestígios e traços revelados pelo inconsciente,nossos sentidos apenas esbarram.

Com efeito, talvez minha atração por esse texto de Caetano Veloso possa ser atribuída a uma identificação que espelha dimensões dos meus próprios pensamentos oníricos latentes afetados pelo que oconfinamento na pandemia carrega de aprisionamento. Como afirmou Freud: “psicanálise é algo que aprendemos, em primeiro lugar, em nós mesmos [...]” (Freud, 1916, p. 25).

Advertindo o leitor acerca da inexistência de relatos de sonhos em Narciso em Férias, viso realizar umexercício mental completamente ensaístico. Minhas pretensões são, portanto, bem modestas: sublinhar elementos da teoria freudiana sobre os sonhos a partir da narrativa de Caetano Veloso sobre si mesmo, mais detidamente, sobre sua relação com o sono em determinados momentos de sua vida e no período de 54 dias em que esteve preso. Desse modo, não farei uma interpretação stricto sensu sobre o sono de Caetano Veloso conforme narrado naobra em referência, mas ensaio esboços interpretativos a partir de seu rico universo imagético que pode ser pensado como “símbolos” de algo mais, exercício dado à tarefa psicanalítica (Freud, 1933, p. 134).

Pisando em terreno freudiano

Dormir e sonhar são atividades ordinárias na vida humana cujos significadosatribuídos variam ao longo da história. Logo, no limiar do século XIX - período de profusão da produção científica - não se suporia facilmente que um campo de conhecimento teria seu solo fertilizado a partir das sementes fecundas do pensamento onírico. Freud fundou a psicanálise realizando um percurso fascinante de desvendamento da dinâmica operativa do que poderíamos denominar de irmãos siameses: o sono e o sonho.

Contrariando as teorias e atribuições de sentido vigentes à épocasobre o ato de sonhar, Freud afirmará (1901) que as concepções médicas dos sonhos não seriam as que mais se aproximariam da verdade sobre eles, mas antes, seriam as percepções do senso comum - mesmo que ainda ancoradas em superstições - as que estariam mais próximas de alcançar o verdadeiro significado dos sonhos.

Ainda que o senso comum insistisse no fato de que os sonhos possuíamalgum sentido, em geral tratava-se de sentidos quase sempre mágicos, ornados pelo pensamento metafísico cuja cosmovisão supramundana fundamentava as representações sobre o conteúdo dos sonhos. Não era esse o ponto de concordância de Freud com a representação do senso comum sobre os sonhos. Na verdade, ele enxergava a sabedoria do senso comum quanto à necessidade de compreender os sonhos como algo a ser desvendado em seu sentido e tal sentido não estava dado pela neurologia, mas pela vida psíquica do sonhador.

Dito de outro modo, nem o naturalismo de G. H. von Schubert queassegurava haver durante o sonho um desprendimento da alma das cadeias de sensorialidade; nem a fantasia onírica de Scherner e Volkelt (Freud, 1901); nem a ideia de muitos autores médicos que restringiam os sonhos a estímulos sensoriais e somáticos ganharam a adesão de Freud. Haveria algo mais no ato de sonhar.

A teoria dos sonhos teve sua primeira versão publicada em 1899 com data de 1900 sob o título A Interpretação dos sonhos. Como é próprio ao processo de construção de toda grande teoria, o texto passou por várias revisões e todas foram empreendidas pelo próprio Freud. Sabemos que nenhuma teoria está pronta, acabada. A reescrita e a reelaboração enunciam especialmente a sua própria natureza: adequação à realidade dos tempos, ou como diria Raymond Williams (2011), à estrutura de sentimentos presente e atuante em uma dada cultura.

Com efeito, Freud atribui à sua teoria dos sonhos o estatuto de“lugar especial na história da psicanálise” (Freud, 1933, p. 126) configurando um “ponto de virada” em que procedimentos psicoterapêuticos até então vigentes são alçados a outro patamar, o da “psicologia profunda”, em suas próprias palavras. Sendo assim, representando o plantio em novos solos, a teoria dos sonhos refuta as interpretações místicas sobre o fenômeno e labuta em direção a um campo sempre em germinação que é a ciência.

Freud assinalou ser impossível interpretar um sonho sem que opróprio sonhador realizasse as devidas associações (Freud, 1933, p. 128). No entanto, na maioria das vezes os sonhos são esquecidos logo que acordamos, ainda que durante o dia possamos ter lembranças indiciárias sobre eles. Por sua vez, os sonhos infantis tendem a ser lembrados por muitos anos e, em geral, neles há umacoincidência entre o conteúdo oníricomanifesto - narrado pelo sonhador - e o latente,a ser descoberto no processo de associaçãolivre. Se ao sonhador é dada a primazia da associação, ao analista cabeater-se a determinados elementos do conteúdo manifesto do sonho para ir se aproximando do conteúdo latente.

Mas para sonhar é necessário dormir. Freud conceituou o sono como umestado psicológico em que nos despimos do mundo exterior, não manifestando por ele mais nenhum interesse (Freud, 1916). Sob a perspectiva biológica o sono teria a função de nos fazer repousar. Diferentemente do que o senso comum tende a difundir, Freud assegura que o sonho não perturba o sono, mas elimina as perturbações decorrentes de estímulos psíquicos para que se possa seguir dormindo. Em terreno minado pelas defesas do Eu, osonho tem como tarefa garantir que nada perturbe o sonhador caminhante.

O sonho como guardiãodo sono - quem guardava o sono de Caetano?

Um resquício de esperança de que estivessem me chamando para ointerrogatório emergiu comigo do sono sem sonhos em que descobria que estivera mergulhado a noite toda (Veloso, 2020, p. 18).

No trecho acima Caetano afirma seu “sono sem sonhos”. Comomencionado, ele passa muitos dias sem ser convocado para o interrogatório que, enfim, poderia lhe informar a razão de sua prisão. Na citação, nosso protagonista relata que alguém o desperta e deixa o café na cela. Ao mesmo tempo, ele se pergunta se teria sido apenas um homem ou mais de um a depositar o café em sua cela. Caetano Veloso duvida, portanto, de suas lembranças, que em muitos trechos do livro são por ele mesmo colocadas à prova.

Ao tentar oferecer sentido ao próprio esquecimento, Caetano entendeque, no contexto da prisão, o esquecimento pode ser uma forma de defesa: “[...] duvida-se da realidade da vida livre que a memória diz ter existido lá fora”(Veloso, 2020, p. 39).

A dúvida que lhe paira ao acordar de seu “sono sem sonhos” pode sertraduzida como algo que acontece no sonho: o esquecimento de determinadas partes; o relato de fragmentos do sonho sonhado. Freud nos adverte que na esfera psíquica nada é arbitrário, nem mesmo o esquecimento. No caso dos sonhos, o fato de haver o esquecimento parcial ou total de seus conteúdos estaria diretamente relacionado ao trabalho da censura onírica[3] ou forças inibidoras cuja tarefaconsiste em alterar a cena do sonho tornando o sonho manifesto quase sempre estranho em muitos aspectos. (Freud, 1932, p. 413).

Quem teria despertado Caetano nessa cena? Teria ele experimentado umsonho de angústia? Ao analisar osonho em sua primordial tarefa, que é a realizaçãodo desejo, Freud assevera que,nos casos dos sonhos de angústia, somos despertados por causa do recalque do desejo que se impõe. A angústia exerce aí o papel da censura.

O sonho de angústia é costumeiramente também um sonho que nos desperta; é comum interrompermos o sono antes que o desejo recalcado tenha imposto sua plena realização, apesar da censura. (Freud, 1916, p. 293).

Há sonhos [...] em que todos os afetos se apresentam, uma dor queleva ao choro, uma angústia que faz despertar, admiração, encanto etc. [...] na maioria das vezes, os sonhos são esquecidos assim que despertamos [...] (Freud, 1916, p. 179).

Segundo Freud, também escolhemos esquecer as impressões e osdetalhes de cada vivência (Freud, 1901). Fazendo a distinção entre o esquecimento de impressões e vivências em relação ao esquecimento de determinadas intenções, Freud conclui que, não obstante o conhecimento a respeito dos fatores que conduzem ao esquecimento não serem plenamente conhecidos, é possível afirmar que algum “motivo desprazeroso”(Freud, 1901, p. 187) aparece em todos os casos por ele analisados até aquele momento.

Dentre as palavras mais brandas que se pode atribuir à experiência do confinamento está o desprazer. Talvez possamos inferir ainda que dada a tristeza e a desesperança de Caetano seus sonhos tenham sido esquecidos.

O meu sono de presidiário era um sono triste e infalível do qual euemergia sem nenhum resíduo de sonho (Veloso, p. 49).

Enfatizamos que no esquecimento ocorre certa escolha entre as impressões que se oferecem e tambémentre os pormenores de cada impressão ou vivência (Freud, 1901, p. 185) .

 

O sono profundo de um insone, as superstições em vigília e o desejo.

O mero fato de começar o ano na cadeia era o pior dos augúrios; entregar-me a isso no sono, sem esboçar nenhuma resistência, seria dar-me a mim mesmo por morto, ao menos para a vida que eu queria poder reconquistar.
(Veloso, 2020 p. 49).

Caetano narra que, por tradição familiar, permanecia sempre despertonas passagens de ano. Na cadeia, no entanto, apesar do esforço e da promessa feita a si mesmo de permanecer acordado, ele cai em sono profundo. Em sua percepção, ter cedido ao sono na virada do ano teria sido uma experiência pior do que permanecer acordado quando desejava dormir, dada a sua permanente resistência e luta contra o sono. Talvez a memória familiar das passagens de ano em vigília e o fato de estar preso em um momento de tamanha memória afetiva o tenha despido do mundo exterior entregando-se ao sono como uma espécie de antídoto.

Quinze anos após apublicação da Interpretação dos Sonhos, Freud escreve um complemento à teoria dos sonhos (Freud, 1917 [1915]). No texto, ele analisa que, quando o Eu constata sua inabilidade em inibir os impulsos reprimidos que o sono libera, ocorre uma renúncia do Eu ao desejo de dormir. O medo dos sonhos promoveria assim a renúncia ao sono. Essa análise está inscrita exatamente na teorização freudiana sobre o narcisismo do estado de sono em que ocorre uma retirada de investimento[4] de tudo que seja representação do objeto. A depender da força desse investimento libidinal a instabilidade do sono é mais aguda (Freud, 1917 [1915], p. 151-169).

Desse modo, ora Caetano parece adormecer renunciando ao desnudamento de sua psique e ora ele se mantém em vigília temendo seus conteúdos oníricos e a expressão que advém do trabalho do sonho. Em Freud esse trabalho consiste em transformar todo pensamento onírico latente em conteúdo onírico manifesto, sendo esteúltimo o que é narrado pelo sonhador [5].

A primeira saída da cela para o banho de sol fez Caetano sentir-sereconfortado ao ver as pessoas movendo-se entre as portas. Mas a visão dos homens fardados no ambiente externo, funcionava, paradoxalmente, como uma reafirmação de sua condição de preso e, ele nos diz, “do caráter de pesadelo” que o mundo adquirira desde que fora preso.

O “inconsciente em vigília”[6] de Caetano parece construir uma narrativa que simboliza seu estado psíquico: o sol, a menção às portas que podem sugerir travessia e passagem ao estado de liberdade e o pesadelo como um catalisador da insônia. A palavra “pesadelo” aparece em alguns outros momentos do texto (Veloso, 2020 p. 57; 61; 80) associando essa simbologia à prisão.

Acordar com gritos de pessoas que estavam sendo torturadas ou atémesmo dar-se conta, ao abrir os olhos, de que o vivido era real e não havia mais para onde acordar nos ajuda a pensar seu “sono sem sonhos”. O pesadelo era o seu real não sonhado.

Quando estava insone Caetano desenvolvia o que denominou de “rituais internos de interpretação de sinais”, que nos remete ao que seria uma das tarefas do trabalho do sonho: o simbolismo. Em Freud, o simbolismo onírico ultrapassa os sonhos, uma vez que se constitui por elementos presentes na cultura mais ampla e integra os chamados “sonhos típicos”. (Freud, 1901, p. 444).

Ao que parece, o universo onírico de Caetano expressava-se fortemente em seu estado de vigília na medida em que alimentava sua imaginação com superstições, exercíciosde adivinhações e forte excitação mental. Associava, por exemplo, a aparição de baratas na cela a prenúncios negativos, mas acreditava que se vencesse o medo e as matasse significaria que o dia da liberdade estaria se aproximando (Veloso, 2000). Por sua vez, a masturbação seria um ato pecaminoso potente para acionar energias funestas. Sua ênfase continuada nas premonições poderia ser tomada como narrativas de sonhos? A ansiedade pela liberdade e a constatação de que, não obstante sua inocência ter sido provada ele continuava preso, funcionava como um catalisador para a representação simbólica e o fortalecimento de seu “sistema de sinais” que ia das baratas às supostas adivinhações e ao complexo sistema mental que ele desenvolvia minuciosamente:

Se eu lançar o jato de Baygonnessa barata e ela conseguir fugir sem morrer, haverá um atraso de três dias na ordem de libertação; Se Hey Jude for assoviada por um soldado do lado de fora da cela, isso dará um empurrão muito mais fraco em direção à liberdade do que se a mesma canção for cantada pelo soldado [...] Veloso, 2020, p. 125).

Nessas práticas premonitórias, Caetano depositava toda a sua energia.Teríamos aqui um investimento libidinalcujo destino se assentaria nos sinais considerados premonitórios por nosso protagonista? Seu “inconsciente em vigília” materializaria no cotidiano os símbolos que poderiam aparecer em seus não relatados sonhos? Na busca por adivinhação estava sua energia libidinal esua defesa contra a ameaça a sualiberdade e a árida realidade. Ali, nos sinais, nas adivinhações, na crença nos búzios e no IChing[7] os canais de comunicação com o inconscientepareciam estar em atividade plena.

Talvez possamos sugerir que a dinâmica do sono de Caetano estivessefortemente associada ao modo como sua sexualidade era vivenciada na prisão, ora sem nenhuma capacidade de ereção; ora fortemente excitado nos encontros possíveis com Dedé, sua esposa; ora subitamente acordado.

Ao ser transferido para o quartel dos paraquedistas, na Vila Militar, há relativa melhoria nas condições materiais da prisão e Caetano associa essa melhoria ao fato de só ali ter tido o que denominou de “esboço de sonhos eróticos” (Veloso, 2020, p. 100) cujos detalhes não são relatados ao leitor.

Ereções espontâneas na hora do banho enunciavam seu ser e seu corpo de volta e, paradoxalmente, Caetano interdita a própria masturbação por acreditar que as energias necessárias para o fortalecimento do Eu seriam dissipadas caso se masturbasse. Que destino quereria Caetano dar às suas pulsões[8]? Em suas representações simbólicas, masturbar-se poderia atrair “energias funestas” (Veloso, 2020, p. 107). Assim, um ato que espelha a vida adquire conotações mortíferas em suas representações.

Seria possível sugerir que a relação ambígua de Caetano com o sono na prisão - ora adormecendo em sono profundo, ora permanecendo em estado de vigília - nos remeteria ao que Freud assinala sobre a relação entre o trauma e a insônia?


Se a vida na prisão era um pesadelo e se o sono abriria as portas para a concretização do desejo, lemos em Freud que a fixação inconsciente num trauma pode produzir a insônia como recusa por temor ao trabalho do sonho, uma vez que este pode vir a transformar os traçosmnemônicos [10] do trauma em realização do desejo. (Freud, 1933, p. 157).

Mas tenho razões para crer que já não dormia tão profundamentedurante a noite. (Veloso, 2020, p. 77).

A memória seletiva - o manifesto e o latente.

Determinados contextos dos esquecimentos e lembranças, operações queocorrem também quando sonhamos são ornados em linguagem literária na narrativa de Caetano. Sabemos que alusões, recortes, vestígios, são indicativos de nossos pensamentos oníricos latentes que aparecem rarefeitos no conteúdo manifestodo sonho. Todos esses elementos inerentes ao sonho se fazem notar na elaboração textual da obra. Assim, talvez possamos dizer que há muitos sonhos não narrados em Narciso em Férias.

Caetano relata que, ao ser preso, os policiais pediram que ele pegasse a sua escova de dentes. O objeto, cujo uso cotidiano é frequente, foi completamente banido da memória do narrador durante o período da prisão. Embora tivesse certeza de que teria usadoa escova de dentes e a levara consigo, Caetano relata não possuir nenhuma lembrança de ter realizado o corriqueiro gesto de escovar os dentes, ainda que assegure que o realizava. Esse esquecimento não lhe passa indiferente e ele o atribui ao automatismo dos gestos, sobretudo na condição em que se encontrava, sendo tais “amnésias específicas” (Veloso, 2020, p. 72) um “mecanismo de defesa”:

Estou certo de que escovei os dentes todos os dias em que estivepreso, mas o fiz num tal grau de entorpecimento que nada ficou em mim que pudesse trazer de volta uma imagem ou uma sensação que o confirme. (Veloso, 2020, p. 72).

Freud elege o conteúdo latentedos sonhos para estudar os motivos para o esquecimento dos sonhos e confere intensa dedicação a compreender os processos pelos quais o trabalho do sonho transforma os pensamentosoníricos latentes em conteúdo onírico manifesto (Freud, 1901). Em Narciso em Férias, as dinâmicas delembrança e esquecimento vão nos dando notícias da vida psíquica do narrador como uma floresta inexplorável em seus recantos. O que sua memória elege como aspecto a ser lembrado (manifesto) e o que lhe é oculto (latente) pelo “entorpecimento” é por ele interpretado como um mecanismo de defesa.

Lembramos que vivências traumáticas podem ter como efeito oesquecimento e a tentativa de esquecer a partir do silenciamento. Talvez a escova de dentes simbolize o trauma do momento da prisão produzindo o
esquecimento do ato cotidiano da escovação.

Seria possível sugerir que diante da ameaça à vida ou quando alçadosà condição simultânea de vítimas e testemunhas da tortura e da morte temos que escolher entre a sobrevivência psíquica e a biológica? O sono sem memória dos sonhos seria uma estratégia de sobrevivência como o silêncio que Pollack nos relatou acerca dos sobreviventes do holocausto? Para ele, as fronteiras desses silêncios e ‘não-ditos’ com o esquecimento definitivo e o recalcado inconsciente não são evidentemente estanques e estão em perpétuo deslocamento (Pollack, 1989).

Freud analisa que eventos da vida cotidiana de pessoas sãs sãooriginários de um mecanismo psíquico análogo ao dos sonhos que seria o deslocamento. (Freud, 1901, p. 426).Sendo assim, esse seria mais um ponto a ser acrescentado sobre as razões para o esquecimento em analogia com o trabalhodo sonho. Esquecer e lembrar, como tudo em psicanálise, tem motivaçõescomplexas associadas à vida psíquica.

Um campo onírico sempre em aberto

Neste ensaio foram realizadas algumas aproximações entre aspectos dateoria freudiana sobre os sonhos e a obra Narcisoem Férias. A suposta ausência de sonhos no texto em referência e, emcontrapartida, a profusão de imagens e associações do narrador permitiram a elaboração deste exercício interpretativo.

Entendo que a obra em análise permite muitas outras associações coma psicanálise que, em razão do espaço deste trabalho e da escolha teórica feita, não puderam ser realizadas.

Em tempos de imagens, linguagens e afetos borrados nos confinamentos da pandemia, a literatura nos abriu janelas de associações entre teoria e a prática psicanalítica e essas nos alforriam das trincheiras de nossos campos oníricos latentes.

Referências:

Freud, S. (2010). Revisão da teoria dos sonhos (1933). Novas Conferências introdutórias à psicanálise, [1930-1936]. ObrasCompletas, vol. 12. Trad. e notas de Paulo César de Souza. São Paulo:Companhia das Letras, p. 126-157.

Freud, S. (2010). Meu contato com Josef Popper-Lynkeus (1932). Novas Conferências introdutórias à psicanálise [1930-1936]. ObrasCompletas, vol. 12. Trad. e notas de Paulo César de Souza. São Paulo:Companhia das Letras, p. 408-416.

Freud, S. (2014). Conferências introdutórias à psicanálise [1916-1917]. Obras Completas, vol. 13. Trad. SergioTellaroli; Revisão da tradução Paulo Cesar de Souza, 1ª edição, São Paulo: Companhia das Letras.

Freud, S. (2010). Complemento metapsicológico à teoria dos sonhos ([1917 [1915]). Obras Completas, vol. 12. Trad. e notasde Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras.

Freud, S. (2010). Os instintos e seus destinos [1915]. Obras Completas, vol. 12. Trad. e notas de Paulo César de Souza.São Paulo: Companhia das Letras, p.51-81.

Freud, S. (2010). Introdução ao narcisismo [1914]. ObrasCompletas, vol. 12. Trad. e notas de Paulo César de Souza. São Paulo:Companhia das Letras, 2010, p. 13-50.

Freud, S. (2021). Psicopatologia da vida cotidiana esobre os sonhos [1901]. Obras Completas,vol. 5. Trad. Paulo César de Souza, 1ª edição, São Paulo: Companhia das Letras.

Pollack, M. (1989). Memória , esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, p.3-15.

Roudinesco, E.; Plon, M. (1998). Dicionário de Psicanálise. Trad. VeraRibeiro, Lucy Magalhães; supervisão da edição brasileira: Marco Antonio Coutinho Jorge. Rio de Janeiro: Zahar, p. 148.

Veloso, C. (2020). Narciso em férias. 1ª ed.São Paulo: Companhia das Letras.

Williams, R. (2011). Cultura e Materialismo.Trad. André Glaser. São Paulo: Unesp, 2011.

Notas de fim:

[1] O documentário estádisponível na Globoplay e o livro foi lançado pela Companhia das Letras, em 2020.

[2] Não é objetivo destetrabalho resenhar a obra em sua relevante dimensão política, mas a partir dela analisar possíveis reverberações da vivência do autor na sua relação com o sono.

[3] A censura onírica étambém chamada de “forças inibidoras” por Freud (1932, p. 413). Na 29ª Conferência intitulada Revisão da Teoriado Sonho a censura é considerada o Super-eu e a censura onírica seriatambém, segundo Freud, uma obra dessa instância. Na formação do sonho o Super-eu exerce um papel fundamental. (Freud, 1933).

[4] Empsicanálise o termo investimento, como tantos outros conceitos freudianos, não é trivial e percorre toda a obra do pensador. Importa assinalar a existência do investimento objetal e o libidinal e ambos são tratados como energias psíquicas que se configuram em oposição na relação entre o Eu e o objeto. Assim, na medida em que um tipo de investimento é mais empregado, o outro torna-se mais empobrecido. (Freud, 1914).

[5] O trabalho do sonho éconstituído por algumas tarefas: condensação, deslocamento, deformação ou conversão e simbolismo. No espaço deste trabalho, e em razão de não haver sonhos a serem interpretados na obra Narcisoem férias, não me aterei ao trabalho do sonho, conceito fundamental noprocesso interpretativo a ser empreendido pelo analista e núcleo duro da teoria Freudiana acerca dos sonhos.

[6] Reconhecendo a complexidade do conceito deinconsciente e suas elaborações por Freud, uso a expressão de modo meramente literário gerando uma espécie de paradoxo estético. Ainda que a natureza do inconsciente suponha o oposto da vigília e da consciência, sabemos de suas manifestações por meio dos chistes, atos falhos e outras dinâmicas de seu modus operandi.

[7] IChing é um texto chinês milenar com um complexo sistema oracular. Pode ser estudado como uma filosofia de vida ou acionado de forma instrumental com objetivo adivinhatório.

[8] Em 1915, Freud escreve: Os instintos (pulsões) e seus destinos e aponta quatro destinos possíveis para as pulsões: a reversão no contrário; o voltar-se contra a própria pessoa; o recalque e a sublimação. O conceito de pulsão de vida e pulsão de morte serão trabalhados pormenorizadamente em 1920 em Além do Princípio do Prazer.

[9] De acordo com ElizabethRoudinesco e Michel Plon os traços mnêmicos (ou mnemônicos) são lembranças que podem ser deslocadas ou remanejadas a cada tempo. (Roudinesco; Plon, 1998, p. 148).