Coração voltado ao mar | Pedro Belo Clara
— 10 de junho de 2019Éramos mudas testemunhas da suave passagem do vento, o pássaro original. O sol tombava em vagares de pedra sem tempo, mergulhando no seio de indizíveis distâncias. Por sonolências entorpecido, os farrapos da sua luz, rastro que adivinhava um secreto convite dirigido à lua, revelavam os segredos adormecidos no inverso do dia.
A palavra saia-te lenta como rumor de brisa junina por entre altos pinheiros, moldada na prudência de quem teme ferir o intangível corpo dum silêncio fulgindo em cintilações puríssimas. Os tímidos afagos da sombra das palmeiras sobre o lânguido esfriar dos ladrilhos convidava à deambulação da memória.
Tudo era solidão: reluzente, indecifrável. Então, assomavam os esmaecidos espectros da vida degustada: avenidas coloridas na surpresa dos jacarandás, a ascendente vertigem dos céus de turquesa imensa, a eterna canção das águas em cálida dança, o sorriso do branco fulgor duma cidade ao sul.
Mesmo crescendo em nós o brando fogo dos astros, semente germinada sempre na dormência das cegas percepções, um sopro de súbito arrefecido como gládio inesperado cortava o sal anda pregado aos corpos. E ao oiro do instante os olhos se devolviam, lembrados do lugar onde a mais preciosa gema habita.
Os volteios do andorinhão pelo céu de quase veludo e o seu grito nu coroavam um bailado pleno de mistérios. Dois pintassilgos, tão junto ao pulsar do instante em expansão final, acrescentavam melodias à melodia obscura da tarde desfalecida. Nas margens do deslumbre, todo o desejo se afoga na ausência de si mesmo.
Ah, o tanto que se escapulia das mãos que nada queriam… O mais que se não conta, no íntimo o sabíamos, fulgia nas imensidões dum longo silêncio, aquele silêncio de puras fulgências, poisado sobre o mudo assombro das bocas, sobre a paz suprema da encantação dos sentidos.
PEDRO BELO CLARA nasceu em Lisboa, Portugal. Um ocasional prelector de sessões literárias, actualmente é colaborador e colunista de diversas publicações literárias portuguesas e brasileiras. O seu último trabalho foi dado aos prelos sob a epígrafe de “Lydia” (2018). É o autor dos blogues Recortes do Real, Uma Luz a Oriente e The beating of a celtic heart.
4 Comentários
A sua escrita implica uma ginástica mental muito gostosa. Adorei ler. Parabéns pela sua sensibilidade, riqueza de vocabulário e arte em acomodar as palavras.
Muito obrigado pela sua apreciação tão simpática e gentil. Apraz-me saber que gostou daquilo que leu.
Apenas uma sugestão, se me permite: a ginástica mental não tem de ser muito rigorosa. O segredo, perante tanta imagem e metáfora, está em sentir, em escutar o som de cada linha, ao invés de racionalizar o que se escreve. Verá que ajuda. É claro que não sei se a minha amiga toma tal caminho, apenas digo que sei de vários leitores que o tomam e, por isso, se vêem enredados nas suas próprias voltas.
Renovo os meus sinceros agradecimentos.
Até breve.
Lindo, Pedro!
Podemos sentir tudo que flui do texto, como uma leitura da alma, sua alma, que deixa transbordar tanto sentimento nos seus escritos. É sempre um prazer!
O prazer é todo meu, cara amiga. Muito obrigado pela sua visita. Apraz-me saber que gostou daquilo que leu.
Até breve.
Beijos.