Sem título | Diogo Costa Leal
— 18 de março de 2020A consolação ondulada
das pequenas atrações terrestres
A grande comoção por cada fímbria do real
A aberta demora das fixas asas de um pássaro
sobre um voo planado
Dois tigres a esfregar roçadas as cabeças
Tamborilar os dedos sobre água fresca
para depois provar o sal
O zumbido do tráfego sobre as pontes
A oscilação dos barcos sobre as ondas
Dois pinguins a trocar um ovo – devagar
Sob os lençóis pés dados como mãos dadas
A qualquer hora qualquer parto de qualquer cria
Um dióspiro a desfazer-se dentro da boca
Os ângulos e linhas de uma mão nova
O pezinho de um bebé
A anatomia da companhia antiga
Um ombro à mostra numa camisola de inverno
O som que o beijo faz ao abrir
e o abraço ao chegar
A chuva no cabelo e na língua
Dois olhos
rasos de água
Ouvir a dona Carminda contar a sua história de vida
ao condutor do autocarro no banco da frente
O carteiro que assobia sempre que passa
A senhora da farmácia que sorri com a cara inteira
A peixeira a arranjar os carapaus
com mãos carregadas de dedos
O suor dourado do senhor Armando
no carvão da churrasqueira
O pão sempre fresco do senhor Alberto
E o pomar cheiroso da dona Maria
Uma criança a cambalear o princípio dos passos
O som da ventania numa garrafa aberta
Um bigode de espuma de cerveja
e uma dedada de chocolate no nariz
As tantas cores possíveis numa só bolha de sabão
Descer o colo de um corrimão
E coser essa linguagem
à canção que compõem nas minhas células
Não nasci para ser um escravo do capital
O que eu tenho
é um carrossel na cabeça
E sou só um colecionador
de realidades preferidas
Diogo da Costa Leal | Portugal
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