Da janela uma tabacaria | David Coutinho (Rio de Janeiro, RJ, Brasil)
— 30 de setembro de 2015Ilustração: Isabela Jerônimo
Ao poeta Fernando Pessoa
Acaba o fumo
Da cadeira defronte à janela estendo as pernas
Me tenho observando através das vidraças
O que por fora é vazio e opaco
Aqui dentro
Um milhão de mundos (que ninguém saberia)
Cruzando ruas e vielas
Como se cruzam os pensamentos sobre as ruas e vielas
Estou cheio do mistério que cria teia nas paredes
Cheio dos cães acuados que cantam para a noite a noite toda
Não há mais vida ou menos vida afora da janela do que aqui, onde há mistérios em teias de aranha…
Pois me encontro certo
Como um milhão de mundos e um milhão de vidas também se encontram
E quem poderá dizer, senão?
Goteja
Porque ontem choveu
E lavou a janela
E passou como quem morre
Vindo novamente o sol
E eu assisti,
– como quem vive o espetáculo de ser um espectador de si
Falharam-me os propósitos
E a lealdade que devo a Tabacaria do outro lado da rua
Posto que acabe o fumo
Acabando-se também o eu que tragava
…traguei-me
Para cuspir de volta toda angústia
Tendo a sensação de que nada penso sentado na cadeira
Quisera fosse; que eu fosse o que penso sentado na cadeira
Aí então eu seria nada, logicamente
Pouco menos que isto
Tenho meu nome e sou identificado
Tenho a certeza do tempo
Que soprará meu nome e identidade
Que não deixará mais que pó onde foram gigantes palácios
Da vaidade das vaidades
O estrume
Senão, errado?
Concebo tão pouco do que alcançam meus olhos?
Não tenho certezas, nem aspirações
Altas, nobres ou lúcidas
Tudo irrealizável
Sendo a minha única
Certeza de que sou irrealizável
Havia gente nas calçadas
Também aqueles cães que cantavam para a noite
Nenhum sequer
– olhou-me –
Nenhum sequer
– sentiu-me –
Pois sentiria, quem sabe, a rebentação de sete mares sobre sete rochas
Mas havia gente na calçada
Todas refletiam nos espelhos das vitrines
Eu também refletia
E era como elas
Sentado do lado oposto
O que fiz dos sonhos
Dos segredos, filosofias e humanidades
Derramei-os ao chão como se chora o leite derramado
Tenho sonhos que já não sonho há muito tempo
Pois acabou o fumo e esta aflição não me deixa dormir
Pois tenho olhado a vida passar pelo vidro da janela
Ainda que a vida que passa não seja a mesma que vejo
Tenho o pânico de estar só no meu quarto sem luz
Sinto tanto espaço me sufocar
Contudo, o mundo é alheio
Como indefinido
E não haveria um para se importar
Risquei todos até que me encontrar só: no quarto, ante a janela.
Não tenho nesse instante vontade de chocolates
Não como aquela menina que come chocolate em frente à Tabacaria
Noto – com sensibilidade singular – que os olhos do homem se enchem de vida
Uma pretensa esperança que tão logo o desperta à realidade
Conheço aquele homem, é Pessoa
Como eu
É meu irmão (ainda que não tenha me percebido, olhado ou sentido)
Eu sinto com ele
Estamos apenas uma rua atravessada de diferença
Contudo, distantes…
Estou enterrado até os olhos
Levanto as mãos na mesma esperança dúbia que assisti
Há quem possa me salvar?
Das paredes que o tempo tornou úmidas
Dos tapetes sensatos cheios de poeira e lembranças
Dos quantos pés que por ele um dia passaram, inútil
Com expectativa de ter o mundo refeito em pequenas mordidas no chocolate
Invoco, aquém, alguém
E não há quem segure minhas mãos
Risquei todos até que me encontra-se só: enterrado até os olhos
(Transbordando de esperanças pelas mãos)
Sinto frio e ponho uma camisa
Que pesam tais quais correntes no calcanhar
Tudo foi estrangeiro, como todos
E como todos tenho vivido minha possível realidade
Tenho passado noites remexidamente procurando o sono
Tocando ao peito um sopro qualquer que inspire
Na certa decepção que lateja se não inspirar
E nada me inspira,
neste momento…
Penso em mim
Havia pensando também na chuva do dia anterior
Como na madeira desta cadeira que sento e estico os pés à janela
Enquanto penso, tudo isso está tão certo
Tudo merece estar em paz
Do cliva ao castanho claro
O brilho – que outrora foi alto – agora manchado
(tais quais minhas paredes úmidas)
Num cheiro imperceptível de madeira que não há
Em sua durabilidade desconhecida
Gozar o conhecimento de todas as eras
Deleito a sensação
E Sorrio francamente
Pela possibilidade de parafrasear a cadeira em que sento com a vida
De me esticar ausente em meu próprio corpo
Assistindo ao dono da Tabacaria defronte
Que se chega zangado à porta
Trazendo a verdade dos tempos da criação do mundo
A verdade dos tempos da criação do homem e da mulher
Dou conta de que há tempos acabou meu fumo
E não há – agora – outra verdade senão esta
Visto uma roupa amassada
Uma roupa desbotada
Abandono meu mundo por instantes
Cruéis instantes em que desço sozinho as escadas
Me dou numa calçada
Onde as pessoas se cruzam como se cruzam os pensamentos
Sobre ruas e vielas
Mais reais do que pela janela de antes
Tão cheias de cores e de passos firmes
E sou ali invisível
Ninguém toca minhas mãos, nem chama meu nome
Como não olhavam ou sentiam o ser que estava depois da janela
Aquele que era eu
Agora que sou outro
Onde a rua nos obriga a caminhar
Minha testa ardeu de – vertigem
Os músculos da coxa queimaram como o fogo das humanidades
Não reconheço o próximo, o próximo não me reconhece
Apenas cuidamos de não nos esbarrar
Estamos perdidos e não nos salvamos: falta tempo
Sobram os chocolates e as verdades
Caminho até o outro lado da rua
Caminho até a tabacaria do outro lado da rua
Um ímpeto caprichoso devora-me de dentro e sobe a espinha
Toda vez que fiz – e faço – esse trajeto
Toda vez que me exponho a par daquele que ficou na cadeira
Olhando-me pela janela
Desejo tabaco
Entro na tabacaria – tomo nota do quão agradável é o cheiro dos mais variados fumos reunidos num só lugar
Pessoa se ergue e sei que sente comigo naquele momento
Acende um cigarro…
Pego o meu fumo, me obrigo ao mal estar de estar disposto
Pessoa se senta, se mete para trás na cadeira como se fosse cama
(se houvesse uma janela e esticasse os pés…)
O dono da Tabacaria volta
Traz na áurea tantos destinos
Seguindo descaminhos da fumaça que inunda meus pulmões
Desfazendo sob meus pés tudo que há de concreto
E metafísico num instante
Preciso voltar à fortaleza
Reestabelecer a concepção de meus sentidos
Dou uns trocados, todos os trocados do meu bolso
Pago o fumo e saio
(com o dono da Tabacaria a me acompanhar até a porta)
Sigo confiante de volta à minha janela e minhas pernas esticadas
Sigo confiante de volta ao meu desterro
E as teias da parede
E a sufocante solidão de estar só, atravessando a rua tão perigosa
Olho para trás
Num golpe repentino
Da sensação única que se tem por estar sendo observado
É Pessoa sem metafísica
Me olhando de uma janela, como antes eu também olhara
Aceno; num gesto consentido e honesto
Ele grita Adeus, ó Esteves!
E morro porque me reconheces
Morro porque há quem me sinta e me acene às mãos
Meu universo se reconstitui em ideal e esperanças,
O dono da Tabacaria sorriu.
DAVID BARRETO COUTINHO é professor e pesquisador por ofício, escritor por prazer. É formado em História e possui mestrado em História Política, tendo assim alguns artigos publicados em revistas especializadas nesse meio. Atualmente, dedica-se à pesquisas na área de Ciência da Informação e a divulgação de seus textos literários. | BARRETOCOUTINHO2@GMAIL.COM
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