AQUI | Ângela Vilma
— 14 de janeiro de 2021
Não sei quem me deixou aqui
onde não há água
nem comida
nem afeto.
Pergunto ao mundo:
meu coração sabia de tudo
antes de entrar no navio?
Meu coração foi auscultado
e visto do grande telescópio?
Caso tenha sido, quem o conteve
de sair fugindo?
Quem o amarrou à proa,
como se faziam aos escravos?
Alguém à noite ouviu seu canto
desesperado?
Seu banzo, sua febre, sua doença
santificada?
Meu coração quis outras plagas,
mas não essas, de água contaminada
e pessoas com branco pálido.
Meu coração quer a procissão dos anjos
e braços, levando nos ombros os santos
com seus ares indiferentes de festa.
Mas no exílio não há estética,
há ramerrão, e esse mundo, tenho certeza,
é velho e estúpido, sem esperança.
Nunca dá, por exemplo,
para sustentar uma prosa em verso
com os transeuntes que param
diante do sinal aberto.
Todos não estão preocupados
com as máquinas que nos esperam:
será que elas, um dia mortas,
ainda enforcarão as crianças?
Sou muito mais o nonsense
para o meu coração enganado,
levado num navio, às cegas,
aprisionado.
Aqui não tem nada:
comida,
afeto,
respeito.
Me deixem sair.
Ângela Vilma nasceu em Andaraí-BA. Publicou, entre outros, Poemas para Antonio (P55, 2010) e A solidão mais funda (Mondrongo, 2016). Participou de algumas antologias, entre elas, Concerto lírico a quinze vozes – uma coletânea de novos poetas da Bahia (Aboio livre edições, 2004) e Mulheres poetas e baianas (Caramurê, 2018). Escreve no Facebook e no Instagram.
1 Comentário
“No exílio não há estética”
Inspirador!
Que possamos sair, em voos solos ou conjuntos, para o espaço que liberta nossos corações.
E não haja mais porões <3