A Cigana | Angelita Guesser
— 14 de março de 2021sentada no décimo terceiro degrau da escada que dá acesso ao museu da Santa Casa,
Cláudia olha pela milésima vez para o sino que,
ao badalar incessante, antecede o marco de 8h.
o ecoar do timbre, cobre contra cobre, avisa a todos da região que já é tempo de deixar
os sonhos para trás.
mas Cláudia já os havia esquecido.
passou os últimos dois meses na presença iminente da morte, e perceber que de alguma forma aquele badalar penetrava sua carne até os ossos fê-la sentir uma pontada de afeto competindo com o cinza da noite que findou.
surpreende-se com sua própria reação, disfarça a tristeza, que não é só sua
***
desce as escadarias e ruma para uma longa caminhada,
os sinos, vários pela cidade, haviam sido construídos
pelos homens do passado, e ela lhes rendia elogios pela honra e dedicação. mas aos de hoje, Cláudia não sente nem rancor. nas ruas a tecnologia super desenvolvida, equipara-se à magia dos seus ancestrais, rouba-lhe a atenção.
enquanto desce a famosa escadaria do Quebra-Costas, percebe uma cigana velha se aproximar:
— um euro para ler a mão da menina?
como se o futuro já tivesse vivido, responde apenas com um aceno de cabeça. nada mais me surpreende, pensa Cláudia ao oferecer a mão.
***
os velhos sentados nas esquinas, desprendendo história, mulheres sensatas enroladas em seus cachecóis, e turistas zanzando curiosos, e Cláudia observa-os. distraída faz o percurso inverso, pensa nas últimas palavras da cigana:
— não se perdoa a maldade!
de qualquer maneira era seu dever voltar, e marcha rumo à morte como fizera os soldados de Napoleão. está condenada desde o dia em que disse sim.
seus pensamentos
fortemente aprisionados, disfarçam sua mesquinhez. de qualquer maneira, pelos intervalos irregulares de mansidão, Geraldo ainda é um bom homem, e ela se pega chocada com a imensa satisfação de lhe saber doente.
o cérebro e o coração, nunca andam no mesmo compasso, e lembra de quando seu corpo não guardava as marcas do humor de Geraldo.
antes de abrir a porta do quarto, trata de colocar um sorriso perfeito
nos lábios.
ao virar a maçaneta, uma voz lhe interrompe o ato:
— ele não se encontra mais nesse andar. — avisa a enfermeira. — você precisa assinar alguns papéis.
Angelita Guesser | Coimbra, Portugal | pseudônimo de Tania Angelita Iora Guesser, doutoranda em Estudos Contemporâneos na Universidade de Coimbra – CEIS20. Psicóloga, bacharel em Direito e mestre em Política Social pela UCPel. Tem dois livros de poesia publicados: Foda-se (Ed. Autora, 2020) e Entre um Eco e Outro (Ed. Letramento, 2020). | a.aguesser@gmail.com
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